quinta-feira, outubro 07, 2010

Filosofia Para Crianças

“O principezinho, que me fazia imensas perguntas, não dava mostra de ouvir as minhas. (…)
-Que coisa é aquela?(…)
-(…)
-Então tu vens do céu? De que planeta és?

Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho

A temática da Filosofia par Crianças, foi desperta em mim, aquando do visionamento de um programa de televisão na SIC, em que uma repórter percorria alguns colégios particulares de Lisboa, onde crianças que me pareciam ser do 1º e 2º ano do 1º ciclo realizavam uma sessão de FpC de 45 minutos, parecendo-me estar muito interessadas e atentas àquilo que era dito pela facilitadora. Por sua vez, esta dinamizava a sessão centrando-se no excerto de uma Novela, e, talvez por estar a ser filmada para uma audiência muito vasta que iria vê-la num possível Telejornal, as crianças eram incentivadas a elaborarem questões retiradas do excerto da novela lida pela facilitadora. Havia por parte da comunidade de investigação, muito interesse, dinâmica, alegria e sobretudo muita vontade de participar na sessão. Havia também um aspecto que me chamou a atenção, que era o respeito mútuo e o saber estar num grupo, o saber ouvir e o saber falar, em suma aquelas crianças, já tinham interiorizado regras de cidadania e respeito pelo outro, estando aptas para mais tarde, e já com um pensamento bem mais amadurecido, serem capazes de elaborar boas reflexões sobre valores, tais como a amizade, o respeito, a justiça, o amor, a solidariedade, a honestidade, etc. Sabiam questionar, e sabiam ouvir aquilo que lhes era respondido, essas repostas podiam não as satisfazer completamente, mas permitiam-lhes reflectir sobre as mesmas num prolongamento para além daquilo que a comunidade de investigação e a própria facilitadora lhes poderia fornecer. O interessante do que me era dado ver, é que leccionando eu na altura do visionamento do programa, turmas do 10ºano e onde a maior parte dos alunos possuía muita dificuldade em expressar o seu raciocínio, (no que a filosofia tem de mais básico!), ao ver aquelas crianças elaborando já raciocínios algo intrincados apercebi-me que de facto a FpC é um instrumento muito válido para o amadurecimento do raciocínio de um jovem adulto. Pensei então, que há que pensar a criança como um ser muito rico e apto para a aprendizagem, e se essa aprendizagem for a filosófica, naquilo que ela tem de mais básico e elementar ( o espanto, a questionação e o porquê das coisas serem o que são e não de modo diferente) então o caminho seguido por muitos colégios e escolas é muito positivo e possível de ser adaptado em todas as escolas, haja vontade para que isso seja feito.
Fazendo um pouco de história sobre o que é isso da FpC, ela existe já há vários anos em mais de sessenta países e nalgumas escolas portuguesas, (quase todas particulares, se bem que há já algumas públicas a realizarem sessões), com resultados muito positivos. Trata-se de um programa de desenvolvimento do raciocínio criado pelo filósofo Matthew Lipman, e que proporciona, através da prática do diálogo (método socrático), o desenvolvimento cognitivo, afectivo e social das crianças, nomeadamente a nível da dimensão crítica, criativa e ética do seu pensamento, numa relação profunda entre o pensar, falar e agir. Pelo que me é dado a ver ( e pelo que leio), tudo aquilo que mexe com a pedagogia, que vai contra os cânones instituídos, nem sempre é aceite de ânimo leve, e tanto é assim que o ensino público português ainda não teve vontade, ‘talvez política’) de integrar nas suas escolas o método, e salvo raras excepções o mesmo fica-se pelos colégios particulares, acabando por criar uma divisão bastante notória a nível intelectual nos alunos desses dois tipos de ensino, (acrescentando-se ainda outros tristes factores) que não interessam para aqui. Para além dos factores acima indicados, (e defendidos por Lipman) existem outros, como é a questão (colocada por educadores e filósofos) que é a de saber até que ponto a criança é capaz de filosofar! Como diz Dora Incotri em “É Possível a Criança Filosofar”, “(…) é certo que a filosofia contribui para se pensar a infância. Mas será que os filósofos e os educadores estão dispostos a considerar o potencial filosófico das crianças?” .A própria autora dá a resposta, remetendo-nos para Gareth Matthews, que por sua vez considera “que as correntes tradicionais do pensamento filosófico e psicológico dizem que isso não é possível, pois a criança não estaria de posse de instrumentos cognitivos necessários à abstracção filosófica”.Se por instrumentos cognitivos pensarmos em instrumentos mentais, elaborados, complexos, capazes de fazer ligações entre conceitos abstractos, e em que a criança esteja já na posse da capacidade de elaborar pensamentos reversíveis, argumentar de forma intrincada e complexa e onde a imagem mental e o jogo simbólico estejam já presentes de uma forma bastante equilibrada e evoluída, então a resposta é não! Uma criança do 1ºciclo ainda não está na posse desses instrumentos, eles surgirão obviamente a seu tempo. Mas, ela é já capaz de a partir da leitura de excertos de novelas adaptadas à sua faixa etária, criar ideias, elaborar questões simples, angustiar-se com certas situações e essa angústia pode fazê-la interrogar-se, ficar perplexa, espantar-se, e essa perplexidade e espanto perante a situação que ouviu através da leitura, pode despertar a sua curiosidade, e ao despertar essa curiosidade a criança procura saber mais…e eis que entramos no pensar filosófico! Então, por pensar filosófico, não posso entender por uma elaboração dolorosa, rígida e complexa do pensamento, mas sim o querer ir para além daquilo que a uma criança é suposto ver e ouvir. Uma criança, a partir do momento em que começa a ter esquemas mentais (Ex: pedir comida, aninhar-se ao colo de alguém que ama, brincar, criar amizades, ter ligações afectivas aos progenitores e não só, emocionar-se, etc), está apta a pensar sobre isso, e sobre outros factores que a ultrapassam de momento, mas que se lhe forem colocados à frente, ela tentará e será capaz de raciocinar sobre elas. Nesse sentido não posso estar mais de acordo com Anne Sharp quando diz: “Se me perguntassem por que em me envolvi na ideia de que as crianças façam filosofia, diria que é porque me sinto ofendida com a ideia de que tratamos crianças como se fossem depósitos e as mutilamos até que sejam maiores de idade. Elas fazem dezoito anos e continuam utilizando palavras como amor, amizade sem saber do que estão a falar”. Isso é verificável, quando chegando a um nível de ensino mais elaborado (Ensino Secundário) o jovem deparando-se com a disciplina de Filosofia, e tendo que raciocinar sobre a dimensão ético/moral/valorativa do seu agir (entre outros aspectos relevantes para à disciplina), vê-se na contingência de não saber minimamente daquilo que se está a falar na aula, do que tem de ler, pesquisar, ou sobre como elaborar uma reflexão filosófica…porque nunca foi confrontado, com o pensamento nas suas formas mais simples. Não é capaz de “pensar” com sentido, com lógica e assertividade. Se nos reportarmos a Jean Piaget, este concebia o ser humano como uma estrutura dinâmica que se constrói ao longo do tempo, passando por fases de desenvolvimento qualitativamente diferentes. Assim, e partindo da observação de várias crianças, entre as quais os seus próprios filhos, J,Piaget, verificou que o desenvolvimento cognitivo se processava por estádios de desenvolvimento. Ora, o que Piaget trouxe de ‘novo’ para a compreensão do desenvolvimento cognitivo de uma criança, foi a possibilidade que a mesma tinha em cada estádio, poder desenvolver ‘jogos de maturação’, conceptualizados em determinados esquemas de acção, em que a linguagem, a imagem mental, os esquemas de acção e de representação levavam ao pensamento, ou seja à capacidade da criança poder desenvolver o seu raciocínio, desde que para isso houvesse um contributo por parte do adulto de uma diversidade de experiências, entre os quais a capacidade de fazer a criança pensar por si mesma. Assim, se uma criança numa sessão de 45 minutos de FpC, é posto em confronto com um caso, cuja temática foi retirada de uma Novela…por exemplo “Hospital de Bonecas”, essa criança tenderá ao fim dos 45 minutos ( e mesmo que não se chegue a nenhuma conclusão) a raciocinar(na sua forma mais simples) sobre o valor do Amor, nas suas mais variadas vertentes. O amor maternal, o amor familiar, o amor pelos nossos brinquedos favoritos ( pela nossa Boneca favorita, como é o caso da Novela) o Amor como ligação entre os seres humanos. Será também confrontado com o facto de por vezes os adultos não possuírem respostas para tudo…apesar de serem adultos e que muitas vezes fogem às questões que lhes são colocadas. Assim essa criança, apercebe-se que também eles, os adultos, precisam muitas vezes de pensar sobre o mundo, sobre as coisas, visto que julgando saber tudo….afinal nada sabem! Uma criança que é posta perante a leitura de um excerto da Novela Kiko e Gui, apercebe-se que muitas vezes os adultos gostam de inventar histórias para si mesma e que elas crianças conseguem dar conta desse logro….conseguem detectar incoerências e que mais uma vez os adultos…. não sabem tudo, quando pensam tudo saber! Uma criança que é posta perante um excerto da Novela Aristóteles Maia, pode conseguir chegar ela própria a deduções lógico aristotélicas, sem que contudo saiba ou esteja interessada em saber quem foi Aristóteles, consegue, iniciar um raciocínio silogístico que mais tarde lhe permitirá criar deduções interessantes e verificar que muitas vezes os seres humanos tiram elações erradas não respeitam em muitas ocasiões as regras da lógica, fazem generalizações precipitadas e abusivas…e o mais interessante, está apto futuramente a criar um raciocínio lógico, em suma a falar correctamente. O que é certo é que está provado que as crianças têm uma apetência natural para criaram questões de cariz filosófico. O facto que continuamente questionarem tudo o que as rodeia, (obviamente que não há regras sem excepções, visto que há crianças que passam pela sua infância incólume a qualquer questionamento da vida, mas a psicologia tem mecanismo para destrinçar o porquê disso) fazem delas seres ideais para se aproveitar todo capital que elas contêm. Nesse sentido, e como salienta Dora Incontri,poderíamos dizer que as crianças parecem estar mais aptas a filosofarem do que boa parte dos adultos. Não que elas teriam mais capacidade de elaborar raciocínios difíceis e complexos do que filósofos profissionais. Ou que encontrariam mais facilidade para compreender os vários sistemas filosóficos. Ou ainda, que dominariam um vocabulário técnico com mais competência que um adulto. Não é isso. É que elas têm mais a ver com a essência do pensar filosófico”.Essa essência do pensar filosófico, passa pela questionação incessante, pelo espanto e pela admiração a tudo o que as rodeia e onde a ingenuidade das perguntas esconde o querer saber o porquê das coisas serem deste e não de outro modo. Segundo Platão e Aristóteles, “(….) o espanto foi o princípio da filosofia, também e como nos diz a autora acima citada, “ também para os modernos como Descartes, a admiração está na raiz da dúvida, da interrogação e da investigação, portanto, no início do filosofar". É próprio do pensar infantil a imensa capacidade de admirar o mundo, no processo de construção de significados e valores. O adulto já tem suas certezas e seus valores e está em meio a tantas preocupações cotidianas, a tantos desencantamentos, que perde a capacidade de admirar-se perante a existência”.Não poderei deixar de terminar esta minha reflexão, sem levantar aqui a seguinte questão: Caberá considerar algum inconveniente para o Pensar Filosófico em mentes tão novas?Terão elas maturação suficiente para perceberem o que está em causa nas interrogações por si colocadas ou nos jogos por si realizados?Se nos reportarmos a Ortega, este defende que “o que é próprio do homem não é o conhecimento, mas a necessidade contínua e incessante de pensar, de saber a que ater-se”. Assim, se tivermos em conta que o homem é um ser racional por natureza, e que esse pensar seja ele filosófico, cientifico, religioso, político, estético,mitológico,etc, faz parte da genes, então poderemos dizer que não há inconveniente nenhum.Contudo, é óbvio que nem todos os seres humanos, vulgo crianças, porque é delas que aqui estamos a tratar, se entregam ao mesmo tipo de raciocínio, posto que a diversidade de interesses, oportunidades, vontades e capacidades intelectuais é prova disso.Mas, se somos seres humanos e se fomos ‘lançados neste mundo’, (Sartre), e se somos superiores a tudos os seres viventes então que mal pode vir ao mundo e às nossas próprias vivências, começarmos desde novos a fazer bom uso dessa racionalidade? Se não houver uma violentação da vontade da criança, se uma comunidade de investigação, questionar, interrogar, dialogar e ao fim de 45 minutos, sair da sesão capaz de continuar a reflectir sobre aquilo que foi debatido,então o que ali se verificou, foi um despertar para o espírito crítico-filosófico, estimulado pelo debate e pelo raciocínio em comum. Se esse bom uso do raciocínio for feito desde cedo, e se isso contribuir para a melhoria do mundo em que vivemos, (as crianças são o nosso futuro), o pensar de forma filosófica criará a possibilidade de existir, tal como diz Dora Incotri ,”um questionanamento sobre a vida, um apelo à consciência do ser e um parto da alma, com a ajuda dos mestres. (…) a criança é sim capaz de filosofar e ser interlocutora da filosofia. É nesse sentido que se pode dizer que as crianças estão mais perto da filosofia, do que boa parte dos adultos”.

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