quarta-feira, junho 14, 2017

Obediência

Há pouco tempo resolvi rever o filme Experimenter do realizador Michael Almereyda  e com um par de fantásticos atores como é o caso de Winona Ryder e de Peter Sarsgaard.  É um dos  meus filmes preferidos a par de Gátaca, este último do realizador  Andrew Niccol. Enquanto o revia   dei por mim a pensar o quanto os experimentos do psicólogo experimental  Stanley Milgram continuam tremendamente  atuais. De facto, Experimenter traz-nos um fiel retrato da natureza humana, demarcando de um modo fantástico a sua fragilidade, sublinhando a sua inconsciência e expondo as propensões comportamentais em situações que  nos são familiares. As demonstradas experiências de Milgran, evidenciam as tendências humanas para comportamentos de obediência cega que nos levam a questionar ou a perceber o porquê do holocausto nazi e das"aceitação" de muitas  ditaduras sangrentas que proliferam infelizmente neste nosso planeta. O estudo realizado por Milgram acerca das reações individuais face a indicações concretas de outros, utilizando a simulação de eletrochoques, revelaram até à saciedade o cumprimento do Homem face à execução de ordens dadas, mesmo que isso envolvesse o sofrimento e a própria vida de outro ser humano. Secenta e cinco por cento dos sujeitos em estudo obedeceram até ao fim da experiência, administrando choques que, hipoteticamente, levariam à morte do indivíduo que os recebera. É muito interessante observar a reacção de todos aqueles que realizaram o procedimento experimental. De facto, quase todos eles afirmaram posteriormente, que se julgavam incapazes de efectuar tal crueldade para com outrem, mas que ali em face a alguém de "bata branca" que os mandava prosseguir com os choques, sentiram-se compelidos a obedecer sem questionar essa ordem tão cruel. Poucos foram os que se rebelaram, e os que o fizeram saíram do experimento zangados consigo próprios e com quem os obrigava a prosseguir com aquele horror. Os que ficavam até ao fim ficavam  tão desanimados e tão afetados que praticamente não conseguiam posteriormente olhar olhos nos olhos com a "vitima" dos electrochoques.
Este magnífico e bem realizado filme (que passou  bem despercebido aquando da sua exibição no cinema em Portugal) é bastante elucidativo da  condição humana e de todos os fenómenos do universo da obediência cega, que se repetem, contínua e sistematicamente  ao longo da História da Humanidade. É também a a meu ver um filme excepcional baseado na história de um grande e esquecido estudioso do comportamento humano.    

terça-feira, junho 06, 2017

Unidas pelo Amor

Está aí em cartaz uma obra cinematográfica nuito boa do jovem realizador polaco Tomasz Wasilewski. 
O filme chama-se United States of Love ,Estados Unidos Pelo Amor,e é a meu ver um filme extraordinário, posto que  o que aí vemos é o amor que perpassa por quatro mulheres sem que alguma o alcance por mais esforços que façam nesse sentido. O filme está construído num mosaico bem interessante em que acabando a historia de uma faz-se a ligação à história da outras sem que as linhas condutoras da ação sejam cortadas entre elas. Todas se conhecem, e todas elas vivem as sua solidão da forma mais triste possível, carregando o fardo de um amor não correspondido numa sociedade que se abre ao Ocidente (anos oitenta muito bem caracterizados através das roupas, penteados e modus  vivendi das personagens), mas que continua profundamente machista. Assim temos, Ágata que despreza o marido porque desenvolveu uma obsessão amorosa quase destrutiva pelo pároco local. Vinga-se fazendo sexo com ele (que  se arrasta atrás dela como um cachorro), usando-o apenas e só como instrumento para a lembrança do homem que ama: o padre. Até a filha ela maltrata, posto que só tem olhos para um ser que ela sabe ser  inatingível.
 O próprio ato sexual feito por esta mulher o o marido é animalesco e assustador, pois nada ali é amoroso, nada ali é digno de ser visto, tudo é violento pois só assim ela consegue sublimar a sua obsessão por alguém que ela sabe à partida que nunca terá. 
Renata  professora de literatura é levada à reforma pela diretora da escola onde trabalha. Esse seu local de trabalho era a sua segunda casa. Desocupada e vivendo nos subúrbios, zonas essas que o realizador filma soberbamente de forma a mostrar-nos como é viver em ilhas de prédios sem cor e sem alma, acaba por ter tempo livre para poder espiar o objecto do seu amor: Marzena, a jovem professora de educação física do colégio onde outrora trabalhava. É também um amor obsessivo, idêntico ao amor que ela tem pelos seus lindos pássaros que voam livremente pela sua casa. Esta casa é o seu refugio, decorada de modo à mesma se evadir da solidão em que se encontra emersa e que a faz estar em constante alerta para as chegadas e saídas do objecto da sua paixão. 
Iza a diretora do colégio, é uma mulher poderosa. Arranja-se bem, veste-se em consonância com o cargo, mas esconde um segredo. É amante há vários anos de um homem casado. Ela pensa que este ao enviuvar, irá  abrir-lhe finalmente as portas da sua casa e assim darem azo ao seu amor. Vai enganar-se redondamente, pois este já não a ama nem a pode ver à frente. O machismo dos homens é aqui posto à prova e a  história de Iza é a  meu ver a que mais mexe com o espectador. Ela é obsessivamente perseguidora no seu amor, quase doentio, por um homem que não hesita em a violentar fisicamente batendo-lhe para se libertar dela. Ela não se quer libertar dele e luta até à crueldade final. Aterrador. 
Por último temos a jovem Marzena objeto de desejo e de amor de Renata. Uma ex miss  da cidadezinha onde vivem, que nunca singrou em nada que queria, ou seja, o mundo da moda e por arrasto o da fama. Boa profissional, jovem e bonita procura o amor da forma mais torpe. Envolve-se com homens que ela julga que a colocarão no mundo que ela ambiciona, mas é óbvio que nada conseguirá. O que querem é o seu corpo jovem e disponível. Apenas a irmã Isa e Renata gostam dela. Iza através do seu amor fraternal tenta cuidar dela e a cena da realização do bolo de anos é disso exemplo e Renata que faz tudo para chamar-lhe a atenção sem que contudo Marzena se aperceba disso. 
Estão todas unidas por amores impossíveis, unidas na sua solidão e profunda tristeza. O sexo é um refugio, mas até isso é feito de uma forma feia e grosseira. 
Wasilewski não hesita em filmar corpos tal como eles são, com todas as suas im-perfeições. Não há fotoshop, o que vemos ali são os corpos daquelas mulheres e daqueles homens. A cena da piscina remeteu-me para a cena de abertura do filme Animais Noturnos do realizador Tom Ford. Os corpos tal como eles são em toda a sua plenitude. Soberbo!
No fim, saímos do cinema, eu pelo menos sai, não com uma sensação amarga de boca, mas sim com a sensação de  como é difícil alcançar o amor e como é digno de admiração a luta desenvolvida pelo ser humano para que tal seja possível. O Amor aqui está apenas na literatura e na bíblia.
Na literatura  que Renata lê para os seus alunos e que o pároco profere nas sua homilias e nas aulas de catecismo. Não existe dentro das casas, não existe entre os casais.
 No fundo aquelas mulheres acabam por ser o espelho de uma sociedade polaca em transformação acelerada, onde a mais profunda solidão e tristeza se agarra à pele destas mulheres (e no fundo à pele dos homens que com elas se cruzam)  cobrindo-os a todos com o seu manto quase irrespirável. 
De facto, um filme muito bom!

sábado, junho 03, 2017

O In-Conformismo

Já Aristóteles afirmava “O Homem é por natureza um animal político”. Somos seres naturalmente sociáveis, tendendo para a constituição de comunidades, necessitando de interação humana, de uma vida inserida num círculo coletivo partilhado.
O Homem, nesta perspetiva, anseia a aprovação dos que o rodeiam, necessita de uma espécie de aceitação que passa pelo seu “eu” individual, como também pelo “eu” inserido na sociedade. Deparamo-nos muitas vezes com a dualidade da nossa identidade, assumindo uma dupla caracterização que difere consoante o olhar, ou seja, conforme a entidade que nos avalia: um olhar pessoal (interior) ou um olhar social (exterior). Acabamos por nos tornar seres fragmentados, indefinidos pela pressão exercida através da educação, da política, da cultura e dos  costumes. É inevitável a criação de um quadro mental que englobe as expectativas que julgamos ter de superar, implantadas por nós ou por outros. De forma a alcançarmos a adaptação social que instintivamente ambicionamos, acabamos por nos pintar à imagem do indivíduo comum, ou, como me atrevo a designar: o sujeito padrão – aquele que reúne as qualidades e os traços que lhe confere atratividade,  que proporciona uma boa incorporação no mapa social, que impede a distanciação e diferenciação do coletivo. Estas competências acabam por resultar numa dissolução na nossa individualidade em prol da conquista de um “eu” coletivo, inserido num corpo geral indiviso.Porque procuramos esta dissolução? Porque não buscamos alcançar a distinção, a criação de uma assinatura particular, o desenho de um traço próprio? A resposta encontra-se, precisamente, na avaliação externa que tememos. Como constatamos, a novidade raramente é aceite de braços abertos nas tradições.
Há pouco tempo estava a ver a série Genius  com um soberbo Geoffrey Rush, como Einstein  onde é-nos mostrado uma possível biografia deste ser tão inteligente e tão inovador.Aí podemos constatar o quanto este homem foi incompreendido e a sua genialidade alvo de chacota e de descrédito pelos avanços científicos então demonstrados por ele. O mesmo se passa quando vi o filme O Jovem Karl Marx do realizador Raoul Peck com August Diehl e Stefan Konarcke. Tanto um como o outro (só para citar dois exemplos, havendo muitos mais)   foram indivíduos ousados e modernos para a época, foram, quase sempre, encarados como loucos, as suas ideias, por contrastarem com o pensamento do cidadão comum (cidadão padrão mencionado anteriormente, cumpridor das normas e paradigmas vigentes), quase  perderam credibilidade e tal só não aconteceu porque estes génios se agarraram a elas com toda a força das suas convicções. As pessoas tendem a assustar-se com o espelho que as consciencializa da falta da sua marca individual, que os alerta para o próprio desaparecimento, que acorda o seu “eu” interior à muito adormecido.   Incidindo no percurso do humano como ser biológico, desde o nascimento que este se encontra, na sua fase mais frágil e precoce, dependente de uma entidade que se define como superior por se apresentar mais capaz (física e psicologicamente), constituindo-se como fonte da nossa sobrevivência. Ao longo do nosso crescimento e em todo o desenvolvimento educacional, é feita esta segregação, é instituída a nossa primeira relação interpessoal complementar, sabendo que será a primeira de muitas. É-nos transmitida a arte da obediência que nos é vendida como a única manifestação de respeito para com entidades superiores. O ato de obedecer constitui-se assim como o principal vínculo em relações não simétricas, quer sejam relações familiares, acadêmicas ou profissionais. É em locais de ensino, em ambientes profissionais ou em espaços constitucionais do mundo adulto que se instaura a ideia de autoridade: qualidade do que é inquestionável, inquebrável e incontestável aos nossos olhos, tornando-nos cegos obedientes, esquecendo ou ignorando os valores e crenças morais defendidas. Somos assim, influenciados a agir de determinado modo, a comportarmo-nos de forma a atingir o cumprimento de ordens que julgamos ter a obrigação e/ou o dever de as concretizar. Testemunhamos nesta sequência de desenvolvimento social o detrimento do pensamento crítico, a vulnerabilidade ética e moral do ser humano e a perigosidade das ações por ele realizadas em consequência de uma obediência total e imediata.  O desejo da integração na sociedade e na cultura, a valorização e o medo incidente na opinião de outrem e a hierarquia estabelecida nas relações interpessoais, representa uma trindade que dá lugar ao conformismo. Conformamo-nos perante a educação que recebemos sem a questionar, perante o retrato social que pintam para nós e por nós. Conformamo-nos assumindo esse retrato como nosso, conformamo-nos rejeitando a mudança, tornando-nos agentes passivos comandados pelo medo. Conformamo-nos alimentando-nos do conformismo dos cidadãos comuns. Conformamo-nos com a vida morta e pobre que levamos, com o largar do “ eu” e o abraçar do “eles”. 
Conformamo-nos fingindo não nos conformar. Conformamo-nos dissociando aquilo que podíamos ser, mergulhando naquilo que esperam que sejamos. Vivemos numa sociedade a preto e branco, monótona, à imagem de um código binário. Cabe-nos a nós: aos loucos, aos anormais e aos marginalizados, pintar um universo aos nossos olhos e viver traçando a nossa identidade e aceitando a de outros. É da nossa responsabilidade convidar a diferença, criá-la e reinventá-la, chamar por experiências particulares vividas por um “eu” sólido mas mutável que acompanha a novidade constante de um mundo múltiplo.